Fui convidada pela SafeSpace, empresa dedicada a construir ambientes de trabalho mais éticos, seguros e inclusivos, para uma conversa sobre Compliance Comportamental, o cenário de conformidade português e abordagens mais efetivas a desvios de conduta no ambiente de trabalho.
Transcrevo abaixo a íntegra da entrevista, publicada originalmente no site da SafeSpace.
Aproveito para agradecer à SafeSpace pelo convite e, em especial, à Ana Luiza Andrade pela condução desta deliciosa conversa!!
Boa Leitura!
Vamos começar falando um pouco sobre a sua trajetória. Dentro e fora do universo de Compliance, quem é a Izabel?
Eu diria que sou uma apaixonada pelo que eu faço e pelos temas que eu estudo. Mas antes disso, sou a mãe do João Pedro e da Maria Fernanda, que são os meus tesouros e que me ensinam todos os dias sobre a importância do exemplo e do respeito.
O Compliance entrou na minha vida em 2014, quando eu trabalhava na Capgemini, uma consultoria multinacional. Eu atuava, nessa época, apenas no departamento jurídico, como líder da área de Contratos Privados. Até que uma colega minha de trabalho, que era a Deputy de Ética e Compliance no Brasil, avisou que se ausentaria em licença maternidade. Então eu me voluntariei para o nosso chefe em comum, que era o Vice-Presidente Jurídico e Ethics & Compliance Officer no Brasil, para assumir essa função enquanto ela estivesse fora. Como acontece com muitos profissionais que atuam na área de Compliance, eu me apaixonei pelo tema. E quando ela voltou, falamos: vamos juntas!
Tínhamos muita coisa legal para fazer no Brasil em relação à área, e como nós duas dividíamos dois chapéus - eu com a área de contratos privados e ela com a área trabalhista - nos pareceu perfeita esta “divisão” da função de Deputy de Ética e Compliance no Brasil. No ano seguinte, nos certificamos internacionalmente juntas pela SCCE (CCEP-I).
Em 2017, por uma decisão familiar, eu, meu marido e nossos dois filhos, nos mudamos para Lisboa/Portugal e iniciei o doutorado na Universidade Nova de Lisboa, passando a me dedicar exclusivamente aos estudos de temas como cultura organizacional, integridade e ética empresarial e compliance.
Em 2019, por percebermos que não se falava muito sobre o tema em Portugal, eu, uma colega do doutorado e um professor da NOVA, fundamos o NOVA Compliance Lab.
No mesmo ano, recebi um convite para trabalhar na TAP Air Portugal e implementar o programa de Compliance Anticorrupção do zero na empresa. Foi uma experiência muito diferente das que tive anteriormente, porque o cenário da área na TAP era bem embrionário.
Em 2021 eu comecei a descobrir o papel e a importância das ciências comportamentais para o compliance. Foi quando, em setembro de 2021, eu entrei na CLOO, empresa especializada no tema, justamente para desenvolver a área de Compliance Comportamental.
Me desliguei da CLOO no final de dezembro de 2022 para me dedica a outros projetos, em especial, ao NOVA Compliance Lab e à IA+P, a minha página pessoal. O nome IA+P, é uma brincadeira com as iniciais do meu nome (Izabel de Albuquerque Pereira). Mas a ideia é: “I, de inspirar / A, de Agir + pelas Pessoas.”, já que eu acredito que nós podemos, de alguma maneira, inspirar as organizações e as suas pessoas para transformar seus ambientes em lugares para melhor se trabalhar. A minha página também tem como objetivo compartilhar um pouco as minhas experiências e o que aprendi ao longo destes anos de estudo sobre temas relacionados à Liderança, Cultura Organizacional, Ética Empresarial e Compliance.
Depois dessas experiências corporativas, eu comecei a descobrir o papel das ciências comportamentais. Foi quando eu entrei na CLOO, empresa especializada no tema, justamente para desenvolver a área de Compliance Comportamental.
Hoje, estou focada em outros projetos. A gente está com muita coisa interessante para acontecer no NOVA Compliance Lab e, em paralelo, cuido da minha página pessoal.
O nome da minha página, IA+P, é uma brincadeirinha com as minhas iniciais. Mas a ideia é: “I, de inspirar / A, de Agir + pelas Pessoas.” Eu acredito que nós podemos, de alguma maneira, inspirar as pessoas, inspirar as organizações para que sejam melhores.
A página tem como objetivo também compartilhar um pouquinho das minhas experiências, criar um repositório que eu já escrevi e do que eu já participei.
Você tem atuação no mercado de Compliance no Brasil e em Portugal. Sabemos que as expectativas atreladas a comportamento e conduta podem mudar de cultura para cultura, de país para país. Quais os maiores desafios de atuar em mercados diferentes?
Para responder a esta pergunta, acho válido até recapitular um pouquinho sobre como foi a criação do NOVA Compliance Lab.
No início do meu doutorado em Portugal, lá em 2017, sempre que eu ia me apresentar para os meus colegas e professores e mencionava que eu trabalhava com Compliance, ninguém entendia muito bem o que eu queria dizer. Foi quando eu conheci a Julia Gracia (co-fundadora do NOVA Compliance Lab), minha colega do doutorado e percebemos que sofríamos da mesma “dor”, porque ela também trabalhava com Compliance Anticorrupção. Mas, ao mesmo tempo, percebemos que dividíamos o mesmo amor pelo Compliance e que queríamos encontrar uma maneira de fomentar o debate sobre o tema no país, porque, tirando as empresas de seguros ou do mercado financeiro, pouco se falava em Compliance aqui em Portugal. Por isso decidimos, com o apoio do professor Francisco Pereira Coutinho, fundar o NOVA Compliance Lab, em 2019. De lá para cá já lançamos um livro, escrevemos diversos artigos e criamos um curso de Compliance para a prevenção da corrupção - que hoje está na sua 5ª edição. Tudo isso com o objetivo de promover o tema em Portugal.
Agora, sobre o cenário do Compliance Anticorrupção em Portugal. Até o final de 2021, não havia, no ordenamento jurídico português, nenhuma lei que definisse expressamente a exigência da implementação de programas de Compliance, nem que sugerisse as consequências da sua existência. Como, por exemplo, uma redução de multas ou a exclusão de responsabilidade.
Justamente no dia 9 de dezembro de 2021, em plena comemoração ao Dia Internacional Contra a Corrupção, foi publicado um Decreto-Lei aqui no país que determina duas coisas muito importantes: a criação de uma autoridade anticorrupção e a aprovação do Regime Geral de Prevenção à Corrupção (RGPC). O RGPC trouxe as diretrizes para a implementação dos programas de Compliance, e as sanções para o caso da empresa não o implementar. Assim, diferente do cenário brasileiro, em Portugal há hoje a obrigatoriedade legal das organizações com 50 ou mais trabalhadores, implementarem programas de Compliance.
Em termos de maturidade, acho que Portugal está como o Brasil estava há dez anos atrás, quando da publicação da Lei Anticorrupção brasileira. Hoje, infelizmente, eu entendo que as empresas portuguesas ainda enxergam o Compliance como custo, não como investimento. Por isto, na minha visão, Portugal ainda tem um longo caminho a percorrer em termos de maturidade dos programas de Compliance. Mas eu estou esperançosa diante das recentes mudanças legislativas no país, especialmente se eu comparar com o cenário de cinco anos atrás, quando eu cheguei em Portugal.
Você fala e escreve bastante sobre Compliance Comportamental, e a importância de profissionais da área partirem de pressupostos mais realistas sobre o comportamento humano. Neste ponto, qual o momento do mercado brasileiro? Na sua opinião, o que falta para desenvolvermos uma abordagem voltada para pessoas, e não para regras?
O Compliance Comportamental é, na minha visão, um grande diferencial. Conhecer as Ciências Comportamentais e os seus impactos positivos quando aplicadas ao Compliance, foi, sem dúvida, um divisor de águas na minha atuação no Compliance.
“A Organização”, de Malu Gaspar, fala sobre os detalhes do caso Odebrecht.
Durante o meu percurso profissional e acadêmico - o que eu acho que deve acontecer com muita gente da área – eu sempre tive curiosidade de entender o que leva as organizações a se envolverem em grandes escândalos de corrupção.
Muitas vezes, eu cheguei a acreditar que era em razão de um pequeno número de pessoas mal intencionadas, das famosas “maçãs podres” existentes em seus ambientes corporativos. Mas com o tempo, analisando com mais profundidade os grandes casos de corrupção, eu fui percebendo que a realidade era bem diferente. Que estes grandes escândalos envolvem diversas pessoas, dos mais variados cargos e posições hierárquicas. Pessoas comuns, que se percebem como honestas.
Isto porque nós, seres humanos, podemos tomar, no dia a dia, decisões que não são éticas e, ainda assim, nos olharmos no espelho e nos vermos como uma pessoa ética, uma pessoa honesta. Isso fica muito bem explicado no livro “Muitos”, escrito por colegas da CLOO, com quem eu tive a alegria de trabalhar e aprender muito enquanto estive por lá. Com base em evidências e estudos científicos, o livro esclarece que esses desvios éticos muitas vezes resultam de uma conjunção de fatores psicológicos, de questões contextuais e de uma pressão temporal perversa (muito comum em ambientes empresariais).
Logo, o grande risco das empresas não está apenas, nem necessariamente, nas “maçãs podres”. Mas, sobretudo, nos “Muitos”, nas pessoas “comuns”, que, por vezes, cometem desvios éticos sem sequer perceber ou que conseguem racionalizar (justificar) os seus desvios.
O grande problema é que a imensa maioria dos programas de Compliance são desenvolvidos e direcionados para as "maçãs podres”. Cria-se uma enxurrada de políticas e normas, tentando evitar que estes “poucos”, as “maçãs podres”, cometam desvios éticos, mas que acabam por gerar um enorme custo comportamental nos “muitos”.
Como Compliance Officer e estudando as ciências comportamentais, eu fui percebendo que precisamos investir em programas de Compliance que gerem uma real mudança de comportamento. E, para isso, precisamos compreender melhor estes aspectos psicológicos e contextuais que interferem na nossa tomada de decisão.
É esta a Proposta do Compliance Comportamental, ou seja, a implementação de Medidas de Prevenção, Detecção e Remediação de desvios éticos nas organizações, mas com base nas evidências das Ciências Comportamentais sobre a realidade cognitiva e comportamental das PESSOAS. Percebendo a força do contexto e da pressão temporal em nossos processos de tomadas de decisão. Por isso é importante adicionarmos estas ferramentas das Ciências Comportamentais às ferramentas tradicionais dos Programas de Compliance.
No mercado brasileiro, recentemente, tivemos um avanço muito bom com o novo Decreto que regulamenta a Lei Anticorrupção, que trouxe uma grande inovação ao incluir expressamente, como objetivo do Programa de Compliance, o fomento e a manutenção de uma CULTURA DE INTEGRIDADE nas organizações. Esse sim deve ser o foco de todo e qualquer Programa de Compliance que se pretende efetivo! Esta inclusão é a consagração, em lei, do que eu, Renato Capanema e Gabriel Cabral chamamos de quarta geração do Compliance no país - que propõe analisar se determinada medida de compliance causa um impacto positivo no comportamento da pessoa.
Pode ser um desafio mensurar a eficácia dos treinamentos e da comunicação do Compliance no dia a dia. Para isso, o Canal de Denúncias é uma ferramenta interessante.
Como um bom relacionamento com a empresa fornecedora do Canal de Denúncias pode gerar mais valor para o trabalho da área?
Eu sou uma grande defensora dos Canais de Denúncia externos. Já trabalhei em empresas que tinham canal de denúncias externo e outras que tinham canal interno. A diferença é gritante.
Sem dúvida, os canais externos trazem muito mais segurança e confiança para que as pessoas relatem. Protege de uma maneira muito mais efetiva denunciantes de boa fé no que se refere à identidade, com a opção de anonimato e, consequentemente, à não retaliação.
Quando recebemos uma denúncia, o mais importante, na minha visão, é identificar áreas de melhoria na empresa, através da identificação da causa raiz de cada relato. Se estão acontecendo, por exemplo, muitos casos de assédio, é preciso ir além de advertências ou medidas de correção para entender o porquê da ocorrência do assédio. O que nós, de fato, percebemos internamente que está faltando e que precisa melhorar em termos de cultura? Quando se tem um canal externo, que cultiva um bom relacionamento com a empresa cliente, conseguimos adotar ações corretivas coerentes no ambiente corporativo e isso desenvolve a confiança das pessoas, que, consequentemente, passarão a ter mais segurança para reportar. Quando se tem um bom relacionamento com a empresa fornecedora do canal, tudo fica mais fácil. A relação de confiança e segurança das pessoas colaboradoras ganha força e isso é muito importante para a área.
Que conselho você daria para empresas que estão estruturando seus programas de Compliance?
Que deem esse passo além e comecem a desenvolver cada vez mais o “olhar” comportamental desde o início de implementação de seus programas de compliance. Que desenvolvam seus programas centrados não somente nas regras (rules-based approach), mas, sobretudo, nas pessoas (people-based approach).
Que deem este protagonismo para o comportamento humano, já que o comportamento humano é reconhecido como algo fundamental para a criação de uma cultura organizacional de integridade.
Acredito que assim conseguiremos Programas de Compliance ainda mais efetivos! E para definir a importância das pessoas no ambiente organizacional, eu gosto muito de uma frase de um escritor americano chamado Zig Ziglar:
“Você não constrói um negócio. Você constrói pessoas e, então, pessoas constroem negócios”.
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