Por que será que algumas medidas de Compliance simplesmente não geram o efeito esperado na organização?
Nós, profissionais de Compliance enfrentamos esses desafios com frequência, não é mesmo? (i) Um Código de Conduta bem estruturado, mas que ninguém lê; (ii) Um sistema de controles sofisticado, mas que é rapidamente burlado; (iii) Um treinamento preparado com toda a dedicação, mas que não convence; entre vários outros desafios. Parte da razão - e da solução - para esses desafios, está no fato de que, muitas vezes, podemos criar medidas de Compliance com um tipo muito específico de pessoa/destinatário em mente, que é uma minoria, uma exceção. Quer saber mais? Neste artigo, eu e os meus colegas Gabriel Cabral e Renato Capanema, trazemos três “mitos” que costumamos acreditar sobre o comportamento desonesto. Boa Leitura!
Três mitos sobre o comportamento desonesto
Os reportes de problemas com as catracas não param de chegar. Você, Compliance Officer de uma grande empresa, com instalações em diversos estados no Brasil, não sabe mais o que fazer.
Nos últimos meses, a equipe de Auditoria identificou que grande parte dos colaboradores tinha o hábito de burlar o sistema de pontos de entrada e saída, para entrar um pouco mais tarde e sair um pouco mais cedo da empresa. Um prejuízo considerável para a organização, que demandava uma resposta rápida da área de Compliance.
O problema parecia claro de resolver: era preciso modernizar e aprimorar o sistema de controles e dar mais treinamentos. Afinal, era fácil burlar o “velho sistema”.
Dois meses depois, era a hora de descobrir se as mudanças tiveram o efeito esperado. A equipe de Compliance estava confiante com o trabalho realizado. Afinal, foram muitos acessos ao novo treinamento de Compliance e praticamente todas as catracas foram substituídas por um sistema de identificação por meio de digitais, muito mais moderno.
Deu tudo certo! Os dados apontavam que os colaboradores não mais burlavam o sistema. O problema estava resolvido. Todos ficaram satisfeitos.
Entretanto, um tempo depois, surgiram novos rumores de que alguns colaboradores começaram a utilizar moldes de silicone, daqueles que podem ser comprados facilmente pela internet, para fazer a marcação de pontos dos colegas. Após uma breve investigação, constatou-se que parte dos colaboradores estava utilizando essa forma de burlar o sistema.
A resposta da equipe de Compliance não tardou: câmeras foram instaladas, funcionários demitidos, novos treinamentos realizados e campanhas de conscientização foram realizadas. Será que não seria o caso de instalar um sistema ainda mais moderno, como o de reconhecimento facial?
Chegamos finalmente ao dia de hoje. Sua perplexidade tem sentido: você fez tudo o que os manuais tradicionais, a sua intuição e a lógica indicavam, mas as coisas não saíram da forma esperada. Você fez tudo “certo”, mas, ainda assim, as coisas “deram errado”.
Por que será que isso ocorreu?
A resposta está no fato de que, muitas vezes, as nossas intuições sobre como as pessoas tomam decisões é pouco realista. Por mais que não percebamos, tendemos a pensar em medidas de compliance que vão funcionar para um tipo muito específico de pessoas. Mais controles e mais informações seriam as medidas adequadas se, e somente se, os seus destinatários fossem pessoas fortemente racionais, com uma capacidade ilimitada de prestar atenção e de assimilar informações, e que precisam sempre de incentivos externos para agir de forma honesta.
Mas como as pessoas realmente se comportam?
Todos nós conseguimos imaginar uma ou outra pessoa muito racional, que toma decisões de forma “fria e calculista”. Porém, quando olhamos para os lados, para a grande maioria das pessoas, fica claro que tais pessoas “frias e calculistas” são a exceção. A realidade é que (e esse é um ponto fundamental para pensarmos na efetividade das medidas de compliance) a maioria das pessoas é emocional e facilmente distraída, especialmente quando tomam decisões complexas em um contexto de pressa e pressão típico das organizações.
A seguir, vamos apresentar três mitos sobre o comportamento desonesto que surgem em razão do fato de utilizarmos como referência a exceção como se fosse a regra, uma minoria como se fosse a maioria. Nosso objetivo não é o de fazer uma explicação aprofundada, tal como no livro Muitos, mas apenas apresentá-los.
Entender a existência desses mitos pode ser a chave para que possamos, primeiro, diagnosticar as razões pelas quais muitas medidas de compliance não funcionam e, finalmente, pensarmos no que podemos fazer para torná-las mais efetivas.
MITO 1: “O crime compensa”
Toda a vez que pensamos em fazer intervenções para mudar comportamentos, ainda que sem parar para refletir sobre isso, adotamos um conjunto de pressupostos sobre como os destinatários das nossas intervenções tomam decisões.
Podemos, por exemplo, partir do pressuposto de que as pessoas levam muito em conta a reciprocidade, ou, talvez, que são muito influenciadas pelo que acham que os outros estão fazendo. A ideia é que vamos sempre criar intervenções adaptadas e adequadas para o tipo de pessoas que temos em mente.
Ocorre que, em geral, tendemos a pensar em um tipo de pessoa muito particular ao desenvolvermos as nossas medidas de compliance. Mais do que seres sociais, recíprocos, entre outras tantas possibilidades, assumimos que as pessoas são movidas, quase que exclusivamente, por cálculos de prós e contras, ou seja, que vão optar pela alternativa mais vantajosa em cada situação.
E por que pensamos assim e não de outra forma?
Aqui é importante perceber que as nossas percepções são fruto de uma combinação do que aprendemos em livros e cursos com as nossas intuições e experiências de vida.
Se repararmos com atenção, livros e manuais de diversas áreas das Ciências Sociais, como o Direito ou a Administração, são fortemente influenciados pelos pressupostos da Teoria da Escolha Racional. Por esta perspectiva, as pessoas possuem racionalidade plena, têm preferências completas, transitivas e contínuas, entre outras características que tipicamente associamos à tomada de decisão “fria e calculista”.
Ocorre que a Teoria da Escolha Racional não é, nem nunca pretendeu ser, uma teoria descritiva sobre como as pessoas tomam decisões. Trata-se, na verdade, de um conjunto de pressupostos que tem por objetivo simplificar a realidade e permitir a construção de modelos preditivos nas mais diversas áreas. A Teoria da Escolha Racional, portanto, serve mais como um benchmark sobre como tomaríamos decisões caso fossemos agentes racionais, algo útil para pensarmos em políticas públicas e organizacionais em alguns contextos, mas não como uma teoria descritiva sobre como as pessoas, de fato, tomam decisões.
Não bastasse a forte influência da Teoria da Escolha Racional nos meios acadêmicos, a percepção de que as pessoas tomam decisões de forma “fria e calculista” também tem respaldo no senso comum, na forma como, intuitivamente, explicamos as ações das outras pessoas.
No nosso exemplo hipotético, se pensarmos, por exemplo, na razão das pessoas terem burlado as catracas, facilmente conseguimos pensar em razões ligadas a incentivos (ex.: a pessoa não tem medo de ser pega ou do tamanho da punição, caso seja pega) e dificilmente pensamos em questões fora desta dimensão (ex.: ela pode achar que se trata de algo comum e aceitável naquele contexto ou sente que se trata de uma contrapartida justa por alguma injustiça que sofreu dos seus empregadores).
O que podemos fazer, então?
O primeiro ponto é entender que, a despeito de conhecermos alguns homo economici por aí, e que todos nós possamos raciocinar desta forma de vez em quando, na realidade, esta não é uma forma realista de descrever o comportamento humano.
O que as Ciências Comportamentais nos mostram é um cenário bem diferente: primeiro, nem sempre somos racionais, previsíveis ou agimos de forma egoísta; segundo, há outros fatores além das questões tipicamente econômicas que influenciam a tomada de decisão, nomeadamente, as questões cognitivas (nossas heurísticas e vieses), as questões sociais (a influência das normas sociais) e as questões contextuais (influências de pequenas alterações na arquitetura da tomada de decisão ou os nudges).
MITO 2: “O problema são as maçãs podres”
É comum ouvirmos que existem pessoas honestas e desonestas, e que os problemas de integridade serão resolvidos se conseguirmos identificar e neutralizar as pessoas desonestas.
Será que é assim mesmo?
Não. O problema não são algumas poucas “maçãs podres”, mas a grande maioria das pessoas comuns, como eu e você, que se consideram honestas, mas que cometem desvios éticos o tempo todo.
Vamos relembrar o nosso caso hipotético das pessoas burlando as catracas: Tente imaginar que você está diante da filmagem do momento exato em que uma pessoa está utilizando um dedo de silicone para enganar o sistema. A pessoa olha para um lado e para o outro, utiliza o dedo fake e, com a maior “cara lavada”, segue para o seu posto de trabalho. Difícil conter a nossa perplexidade ou um sentimento de raiva: “Como uma pessoa pode ser tão mal-caráter assim?”
Não bastasse isso, horas depois, essa mesma pessoa posta em suas redes sociais que é contra a corrupção ou escreve algo sobre a importância de ensinar aos seus filhos os valores éticos. Então pensamos: “Só pode ser uma pessoa louca, talvez um psicopata ou um serial killer disfarçado”. Provavelmente nenhuma dessas opções.
A grande contribuição das Ciências Comportamentais para a psicologia da desonestidade é perceber que as pessoas conseguem conciliar o que deveria ser inconciliável: agir de forma desonesta e se perceber como uma pessoa honesta. Isso é possível, de forma geral, por duas razões[1]: (i) os pontos cegos éticos, ou seja, os contextos em que realizamos desvios éticos sem que possamos identificar o dilema moral da nossa ação; e (ii) os mecanismos de racionalização, que utilizamos para atenuar as nossas ações.
Assim, apesar de pensarmos que se trata de uma pessoa desonesta — e que sabe e não liga para isso —, o mais provável é que se trate de uma pessoa que se considera honesta, mas que (i) ou não percebeu que fez algo reprovável ou que (ii) percebeu que fez algo reprovável, mas utilizou a sua criatividade para diminuir o seu mal-estar psicológico e o seu sentimento de culpa.
O ponto importante aqui é que, salvo raras exceções, como casos das pessoas no espectro da psicopatia, todos nós nos consideramos honestos — sim, mesmo aquele político corrupto que estampa as capas de jornais —, e que, talvez o ponto mais importante: considerar-se honesto não é garantia para que as pessoas deixem de cometer desvios éticos.
A verdade é que, em razão dos pontos cegos éticos e dos mecanismos de racionalização — sem contar com a nossa enorme dificuldade de identificar nossos próprios erros —, nós, os “Muitos” do livro Muitos, sempre poderemos ser a “maçã podre” aos olhos das outras pessoas.
MITO 3: “Quanto mais controles, melhor”
Temos muita dificuldade de perceber os efeitos colaterais da criação excessiva de controles sobre a motivação das pessoas.
O profissional de Compliance se encontra, muitas vezes, diante de um dilema: por um lado, precisa implementar controles suficientemente rígidos para evitar todo o tipo de desvios; por outro lado, sabe que a implementação desses controles têm impacto negativo sobre o bem-estar e a motivação dos colaboradores.
Não precisa ser assim.
As Ciências Comportamentais nos mostram que este é um falso dilema. O profissional de Compliance não precisa fazer uma escolha dura entre o “menos pior” dos dois males, mas conciliar o melhor dos dois mundos: criar controles duros o suficiente para dissuadir uma minoria de mal-intencionados, mas de uma maneira que não prejudique a satisfação, nem diminua a motivação da grande maioria das pessoas, que já pretendia, naturalmente, agir de forma correta.
Para entender este ponto, precisamos compreender o porquê de os controles causarem tantos problemas. O primeiro passo é identificarmos que existem diferentes tipos de motivação e entendermos como ocorre a interação entre elas.
As pessoas possuem, portanto, dois tipos de motivação. De maneira geral, podem ficar motivadas para realizar alguma atividade por um tipo de motivação de natureza mais autônoma, que vem “de dentro” — a chamada motivação intrínseca; ou por um tipo de motivação de natureza mais controlada, que vem “de fora” - a chamada motivação extrínseca.
Geralmente, estamos autonomamente (ou intrinsecamente) motivados para realizar atividades que consideramos interessantes ou importantes, como, por exemplo, aprender um novo instrumento — ou agirmos de forma honesta no dia a dia. Isto é, temos a motivação para realizar a ação independentemente da existência de algum incentivo econômico ou reputacional.
Por outro lado, para as atividades que não consideramos interessantes ou relevantes é necessário algo diferente para nos motivar. Nestes casos, precisamos de incentivos extrínsecos, como a previsão de uma multa, de um prêmio ou uma ameaça de punição, para ficarmos — e permanecermos — motivados para realizar a atividade.
O problema surge quando misturamos os dois tipos de motivação. Isto é, quando adicionamos incentivos extrínsecos (ex.: um controle), para atividades que as pessoas já realizam de forma autônoma, por estarem intrinsecamente motivadas.
Neste caso, de forma intuitiva, podemos pensar que se trata de uma combinação perfeita. Afinal, agora as pessoas têm o dobro de motivação que tinham antes para realizar a atividade: a motivação intrínseca (que sempre tiveram) mais a motivação extrínseca (promovida pelos incentivos externos).
Porém, não é bem assim que ocorre na prática. As evidências das Ciências Comportamentais nos mostram que a adição de incentivos externos pode não só prejudicar a performance das pessoas — fenômeno conhecido pelos economistas como crowding-out da motivação intrínseca —, como também a sua satisfação e o seu bem-estar no médio e longo prazo — fenômeno conhecido por psicólogos como undermining effect. Além do efeito perverso de criar a dependência da performance das pessoas à manutenção dos incentivos.
Por que isso ocorre?
O problema surge porque os dois tipos de motivação não combinam muito bem entre si. Motivação intrínseca e extrínseca, em vez de somarem, ou apenas coexistirem, podem acabar por se anularem mutuamente.
O que podemos observar é que a adição de incentivos externos acaba por corromper a forma como a pessoa percebe a atividade. No caso dos controles de compliance para dissuadir os desvios éticos, o risco é o de que o destinatário do controle comece a perceber as questões ligadas à ética (algo inegociável na sua vida particular por uma questão de princípios) como uma questão de business ou econômica, algo passível de um exame de prós e contras.
Portanto, o desafio do profissional do Compliance, na realidade, não precisa ser na escolha entre mais controles ou mais motivação, mas uma forma de conciliar ambos. Isto é, criar controles rígidos, mas que não gerem tantos efeitos colaterais sobre a motivação e o bem-estar dos seus destinatários.
Dá para fazer! E o caminho passa por ajustar as medidas de controle às chamadas Necessidades Básicas Psicológicas das pessoas por Autonomia, Competência e Conexão. Um papo para um próximo artigo.
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Autores:
Gabriel Cabral, Behavioral Compliance Specialist na CLOO
Izabel de Albuquerque, Head of Behavioral Compliance na CLOO
Renato Capanema, Professor & Researcher na CLOO
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O artigo foi publicado originalmente aqui.
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